Dogme #1: 13 til bords

A comensalidade têm se mostrado importante na relação entre arte e fraternidade. A mesa de refeições, nesse aspecto, se torna praticamente mais uma personagem na complexa teia que envolve pessoas por meio de um determinado vínculo que as une. O cinema documental demonstra isso com uma profunda reflexão em Crônica de um Verão, dirigido por Jean Rouch e Edgar Morin em 1961 (com direito a discussão acadêmica ligando o documentário francês ao brasileiro Jogo de Cena). Trinta e sete anos mais tarde, o Manifesto Dogma 95 (que visava um cinema mais orgânico, assinado pelos diretores Thomas Vinterberg e Lars von Trier) retoma a comensalidade em seu Dogma #1: Festa de Família.

Não por acaso, Festa de Família é uma das grandes inspirações de 13 à mesa (13 til bords, no original norueguês), criado em 2000 por Kristin Hammerås e Solveig Malvik, larp realizado na edição de novembro do FERVO, que ocorreu no aconchegante restaurante Cantinho da Cecília, na chuvosa noite do dia 21, e contou com 6 participantes (7, se levarmos em conta o atencioso garçom que nos atendeu, passando boa parte do tempo observando o larp genuinamente interessado).  A relação entre Festa de Família e 13 à mesa não se dá apenas pela comensalidade e pela relação familiar entre as personagens: assim como Festa de Família é o primeiro filme designado como um filme do Dogma 95, 13 à mesa inaugura os larps listados como pertencentes à outro Manifesto, o Dogma 99. Numa clara alusão ao manifesto do cinema dinamarquês, os noruegueses Eirik Fatland e Lars Wingård transliteraram o manifesto cinematográfico à linguagem do larp, anunciando-o como um manifesto pela liberação do larp. Nele, entre outras coisas, podemos notar o primeiro chamado para refletir sobre o larp como uma expressão artística.

A reunião de família, cristalizada durante o larp como uma comemoração de aniversário, trouxe assuntos diversos, discutidos durante o debrief. Numa época de constantes notícias sobre a família tradicional brasileira, o larp claramente trouxe uma família com uma postura conservadora, com críticas à posturas progressistas, não-aceitação de transgêneros (com direito à constrangimentos no trato com um dos participantes), conversas sobre empreendedorismo e debates sobre a nova legislação trabalhista brasileira. Curiosamente, o pilar da religião, que sustentaria tanto o "Deus, Pátria e Família" integralista quanto o TFP, não surgiu em nenhum momento do larp. Racismo e homofobia, contudo, se fizeram presentes, assim como diferentes pontos de vista sobre a questão das drogas no contexto universitário. Outro elemento que permeou o larp, possivelmente favorecido pela própria estrutura familiar presente no game design de 13 à mesa, foram as intrigas e fofocas que ocorreram quando alguma das personagens se afastava da mesa.

Reflexões ulteriores ao larp se concentram em torno do papel da comensalidade no larp. Calendário, no FERVO de setembro (cujo relato pode ser lido aqui), já havia mostrado alguma relação entre a comida e o larp. Se tomarmos por referência a arqueologia do larp realizada por Brian Morton, disponível no livro Lifelike, o primeiro "primo" do larp que temos registro já faz uso da refeição como pano de fundo para criar uma interação entre os participantes: Otaviano, antes de se tornar Augusto César, realizava ocasionalmente o Jantar dos Deuses, onde cada um dos participantes recebia uma descrição da divindade que iria fazer o roleplay durante o jantar que era oferecido.

FONTE: A Última Ceia, de Leonardo da Vinci.

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