Cegos, Surdos e Mudos

Entre os dias 8 e 10 de Dezembro, rolou o 11º Encontro de RPG no CCJ, promovido pela Confraria das Ideias. Antes de falar sobre o larp que eles organizaram per se, algumas palavras são necessárias sobre a Confraria.

A Confraria atua desde 1999, formalizada como ONG em 2007, promovendo (sobretudo) larps em bibliotecas públicas e centros culturais. Se for para considerar uma única entidade como responsável em ter trazido o larp brasileiro para onde está hoje, certamente seria a Confraria das Ideias. Mesmo ao complexificarmos esse processo, inserindo outros responsáveis, ainda assim a Confraria merece lugar de destaque. E, dada a experiência do último larp que eles organizaram, continuarão merecendo.

Feito esse reconhecimento, voltemos ao evento ocorrido no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso. Na ocasião, tive a oportunidade de participar de dois larps (o relato sobre o outro está disponível aqui). O primeiro, objeto desse relato, foi Cegos, Surdos e Mudos, realizado em duas aplicações (dias 8 e 9, sendo que participei no dia 8).

Desde que vi o evento no Facebook, fiquei bem curioso. A temática, envolvendo uma lenda urbana sobre o álbum Tommy, do The Who, contrastava com parte significativa da produção da Confraria, que costuma privilegiar a cultura brasileira. Lembrei-me de imediato de um texto do Leandro Godoy, um dos confrades (como os membros da Confraria se denominam), onde ele apontava como o larp havia ajudado ele a fazer as pazes com a cultura regional brasileira.

E, de fato, Cegos, Surdos e Mudos manteve esse foco na cultura brasileira. Para explicar isso, é necessário demonstrar a estrutura do larp, inspirada na lenda urbana que cercava o álbum. Dizia a lenda que, se alguma pessoa ouvisse a ópera rock Tommy com uma vela acesa, poderia ver todo o seu futuro. A partir disso, o larp propôs que um grupo de amigos se reunia, ao final do período escolar na adolescência, e decidia testar a lenda urbana.

A escolha pelo Brasil fez toda a diferença, certamente. Se o larp fosse situado em algum lugar como os Estados Unidos, por exemplo, o clima de felicidade do Festival de Woodstock certamente daria o tom, já que o jogo começava em 1969 (ano de lançamento do álbum Tommy). O Brasil, por outro lado, vivia 1 ano de instituição do AI-5 e a posse do General Médici.

E grande parte do brilho de Cegos, Surdos e Mudos se dá justamente pela meticulosa escolha dos anos que marcam as cenas futuras que o grupo de amigos vivencia. De 1969, salta-se para 1970, com o clima de festa no tricampeonato da seleção brasileira na Copa do Mundo (curiosamente, na última vez que estive no CCJ, também comemorava esse título no larp Jogo do Bicho, sobre o qual Luiz Falcão escreveu um artigo). Depois, Cegos... convida para ir a 1980, 1984 (no calor das Diretas Já), 1989 (ano que marca as primeiras eleições diretas desde 1960), 1994 (ano do tetracampeonato da seleção brasileira na Copa do Mundo, assim como  um otimismo econômico pela instituição do Real como moeda), 2001 e 2016. Se somente os presidentes forem observados, o gradiente proposto pela Confraria nesse fica ainda mais evidente: Costa e Silva/Junta Governativa Provisória/Médici (1969/1970); Figueiredo (1980/1984); José Sarney (1989); Itamar Franco (1994); Fernando Henrique Cardoso (2001) e Dilma Rousseff/Michel Temer (2016).

Mas o larp não se resume à esse apanhado histórico (embora seja certamente louvável o trabalho de pesquisa que transpira na obra). Primeiro, porque Cegos... não foi um larp sobre política: foi sobre uma amizade que perpassa o tempo, e os sentimentos disso ficaram evidentes durante todo o larp (o bleed certamente foi levado em conta no desenvolvimento de Cegos...). Além disso, destaque também para a paisagem criada pela Confraria por meio de um trabalho (realizado por 4 organizadores) afinado entre cenografia, iluminação, figurino e trilha. Mais ainda, um enorme destaque para a sutileza da dramaturgia do larp: os 8 participantes, sem sentirem em momento algum a falta de agência, foram conduzidos para as situações narrativas que a Confraria previu com a partitura de Cegos, Surdos e Mudos - chegar na última cena e ver que fomos exatamente para onde a Confraria queria com a proposta do larp foi uma demonstração de uma produção madura, fruto desses 18 anos de pesquisa e (des)envolvimento com a linguagem.

FONTE: Imagem da galeria do IMDb sobre o filme Tommy (1975), inspirado no álbum.

Comentários

  1. Devo confessar que mesmo já tendo lido várias vezes seu artigo, ainda me emociono. Grato pelas palavras! É o poder da linguagem! :-)

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    1. Os agradecimentos são todos meus, Godoy! Parabéns pela proposta desse larp maravilhoso!

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