Deriva

Dia 17 de Dezembro é uma data importante para o larp. Primeiro, porque marcava o início da Saturnália, festival romano apontado por Brian Morton (no livro Lifelike) como um dos ancestrais do larp. Segundo, porque assinala a execução de A Clínica: Projeto Memento, larp que é um dos marcos do que o Luiz Falcão (autor do larp) chama como a entrada do larp brasileiro numa "terceira onda" (o texto completo pode ser encontrado no livro The Cutting Edge of Nordic Larp). Terceiro, foi a data escolhida para realizar o Memorial Evening de Elge Larsson, figura de estimada importância na cena nórdica de larp, certamente ressonante também no Brasil (clique aqui para postagem do NpLarp sobre o assunto). E agora, data também a execução de Deriva, na despedida de Apenas um Jogo, programação sobre larp do Espaço de Tecnologias e Artes do SESC Itaquera, que contou com curadoria do Luiz Falcão.

Deriva é um larp de Luiz Prado, o primeiro de uma série batizada "Larps de Amor, de Loucura e de Morte", numa referência à Contos de Amor, de Loucura e de Morte, do escritor uruguaio Horacio Quiroga. Mais do que transpor impressões e imagens do conto À Deriva, de Quiroga, para a linguagem do larp (como afirma Luiz Prado aqui), Deriva dialoga com parte da pesquisa que o autor vêm desenvolvendo. Três características levam à essa afirmação: enfoque na autonomia/responsabilidade dos participantes e enfoque do uso do corpo (monstros e Último dia em Antares seriam outros exemplos de "larps físicos" do autor). Sobre a terceira, falarei em breve.

A primeira coisa que chama a atenção é a destreza e maturidade na linguagem que culminam na partitura do larp: Deriva é um larp onde o universo concreto e o universo ficcional encontram-se num nível de separação que nunca havia visto alguém sequer especular no larp antes. Isso porque, durante o larp, cada participante é uma pessoa sozinha na selva. Os outros participantes, que ocupam o mesmo espaço concreto, podem/devem ser re-significados. Em suma, Deriva poderia ser facilmente descrito como um (provavelmente o primeiro) larp solipsista.
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FONTE: Horácio Quiroga na mata, retirada do site do Luiz Prado.
A terceira característica dos larps do Luiz Prado é algo que já foi fruto de discussões informais (entre ele, Luiz Falcão e eu): operarem em algum pólo de um binômio que ou ocupa o espaço a partir da re-significação, ou re-significa o espaço a partir da ocupação. Um exemplo do primeiro pólo é Andarilho, onde os participantes utilizam-se de bares, restaurantes e calçadas, ocupadas a partir do momento em que a partitura orienta que aqueles lugares são outra coisa durante a duração do larp. O segundo pólo, cujo exemplo é Chuva Ácida (segundo o Luiz Falcão, já que não tive oportunidade de participar), onde a própria ocupação do espaço pelos participantes dá um outro significado pelo ambiente. Deriva, nesse sentido, une os dóis pólos desse binômio: o ambiente do larp é re-significado (a floresta), e a partir disso é ocupado. Recursivamente, a ocupação pelos participantes dá novos significados para o ambiente de jogo. Isso porque, como cada participante está sozinho na floresta, a presença dos outros participantes na sala pode/deve ser re-significada. Dessa forma, assim como ocorre com mesas e cadeiras, os corpos dos outros participantes poderiam se tornar, na ficção, pedras, animais ou árvores, por exemplo. Com segurança, Deriva cria um frutífero diálogo, e aprofunda ainda mais a questão, no que tangencia tanto as salas diegéticas do larp, quanto o role-playing como construção interativa da diegese subjetiva (artigos de Carsten Andreasen e Markus Montola, respectivamente, encontrados no livro As Larp Grows Up).

Além disso, o larp me proporcionou um bleed, no sentido de incomodar por criar uma identificação com algo que tenho problemas em encarar na vida cotidiana: estar sozinho num lugar cheio de gente (tal qual ocorre no metrô).

Cinco pessoas participaram dessa segunda execução (a primeira foi durante a programação TERRITÓRIO LARP, executada no SESC Ipiranga). E aqui cabe também o registro para a participação do organizador que, igualmente numa chave solipsista, promove a trilha sonora ao vivo durante o larp. Com isso, é estimulado pelas ações dos outros participantes, ao mesmo tempo em que as notas do violão estimulam os participantes. Todos convivendo num mesmo ambiente concreto, mas em cinco distintos ambientes ficcionais.

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