Artes Participativas!
Duas mensagens.
Em uma era pautada pela hiperconexão, foi
esse o contato direto que eu tive com Elge Larsson, um dos autores dessa obra
que você agora tem acesso em português. Era outubro de 2016, e falar um pouco
sobre esse mês me parece o jeito mais acertado de começar a apresentar o livro.
No meio do mês, havia defendido minha
dissertação de mestrado. Deltagarkultur já havia surgido como uma das referências
da pesquisa, vide uma citação em outro texto aqui, uma tradução de um trecho
via Google Tradutor acolá. No dia da minha defesa, comemorando, conversava
com o Luiz Falcão e o Luiz Prado e, em algum momento, surgiu o assunto de como
esse livro parecia um referencial precioso de ser aprofundado. Foi o Falcão
quem me apresentou o livro - em uma versão em inglês que permanece inédita, só
tendo circulado nos bastidores - e o desejo de traduzi-lo.
No final do mês, decidi enviar mensagem
para Elge Larsson. Dos quatro autores, Elge era o que eu mais tinha afinidade: era
fascinado por seus textos disponíveis nos livros da Knutpunkt,
conferência nórdica sobre larp. Ele respondeu prontamente e enviou o rascunho
da versão em inglês. O chamado da aventura estava ali.
No ano seguinte, ingressei no doutorado. Deltagarkultur
permanecia sempre por perto. Mas as demandas de estudar/pesquisar em outra
cidade me impediam de traduzir com o afinco que a obra, agora já devorada,
pedia. Um rascunho da versão em português, feito a partir do rascunho da versão
em inglês, me acompanhava. Sempre. Naquela altura, já tinha noção da dimensão
do poder daquele/desse texto.
O tempo passou. No final de 2018, as idas
e vindas para outra cidade aliviaram. Ao mesmo tempo, já existia a certeza de
que Deltagarkultur seria central em minha pesquisa. Juntos, esses dois
fatores me fizeram voltar, dessa vez mergulhado de cabeça, para a tradução do
texto. De lá para cá, o texto foi lido, relido, readequado, revisado, redescoberto
e, por fim, revelado.
Vá em frente!
Essa foi a primeira das mensagens de Elge,
quando lhe perguntei sobre a possibilidade de traduzir e, quem sabe, publicar Deltagarkultur.
Mal eu sabia, na época, que talvez “vá em frente!”, desse jeito, com exclamação
no final, seja a melhor maneira de definir o que significa participar.
Participar é ir em frente, com entusiasmo, tomar parte, agir. “Vá em frente!”
talvez seja uma frase pouco adequada para se referir ao espectador ou ao
interator. Mas certamente é cabível para definir o estado de espírito do participante.
Mas participação é uma palavra que vemos
aqui e acolá, talvez sem dar a devida atenção. Daí uma das preocupações dos
autores: Cultura Participativa, tradução literal de Deltagarkultur,
trazia uma relação ruidosa com o termo homônimo trabalhado por Henry Jenkins,
entre outros autores. Essa obra fala de algo diferente. Por isso, já no
rascunho da versão em inglês, a sugestão era que o título passasse a ser Artes
Participativas - sugestão prontamente acatada.
Ir em frente, com exclamação, parece retomar,
em alguma medida, a méthexis platônica - une, sem confundir. Comunica.
Mas ir em frente, com exclamação, também carrega um pouco da transgressão e do
vanguardismo por vezes envolvidos com a arte. Expansora de universos, diria
Vilém Flusser. Por isso, uma ideia de arte participativa parece corresponder
mais com o que os autores propõem do que a
estabilidade/estagnação/sedentarização que, por vezes, a palavra cultura evoca.
Uma ideia de arte participativa, para além da arte de galeria, mas como condição
da vida cotidiana, envolve tanto a tomada do poder de ação outrora destituído
dos indivíduos quanto da transgressão que isso causa nos modelos
hegemonicamente vigentes. Um livro perigoso para os tempos em que vivemos.
Perigoso porque aventa possibilidades. Perigoso porque carrega esperança.
Experiência e perigo, é sempre bom lembrar, carregam a mesma raiz. É um livro
que convida a experimentar - não apenas as palavras aqui registradas mas,
sobretudo, o mundo que nos cerca. Trocar a posição de espectador/interator da
realidade por participante é um convite - talvez o mais contundente deles - ao
levante de Hakim Bey.
Vou enviar-lhe a tradução em inglês que
temos e estou realmente ansioso para ser incomodado por perguntas
Essa foi a segunda, e última, mensagem que
recebi de Elge. Havia dito a ele que, apesar do interesse em traduzir, um dos
grandes problemas que se apresentava era que eu não falava sueco. A versão em
inglês era um rascunho, cuja compreensão por vezes não era plenamente possível.
Nessas horas, era preciso recorrer a versão em sueco, generosamente disponibilizada
gratuitamente (generosidade que, desde o começo, decidimos honrar na versão
brasileira), e a ferramentas de tradução online. Dúvidas seriam inevitáveis, e
eu adverti que era possível que eu lhe incomodasse várias vezes com elas.
Mas não foi possível incomodar Elge
nenhuma vez. No início de novembro de 2016, Elge “finalmente transgrediu a realidade
física”, como postou Mike Pohjola. E isso alterou significativamente a versão
brasileira. Em primeiro lugar, de maneira mais óbvia, porque eu não pude
incomodar um dos autores, aquele de quem eu me sentia mais próximo, com minhas
dúvidas. Mas vai além disso.
Foi pela voz polifônica de Míriam Cris
Carlos Silva, em coro com Iuri Lotman e outros do bando de pessoas que pensaram
sobre a questão, que ouvi, pela primeira vez, que “toda tradução é uma
traição”. Mas, no contexto dessa obra, traduzir também pode significar
participar. Em dado momento, sentia que já participava da obra. “Será que aqui os
autores estão falando de contrato social, no sentido empregado por Rousseau, ou
será que acordo cabe melhor?”. “Arte espectativa, com S mesmo, que se refere
àquilo que é do espectador, fica estranho em português. Melhor colocar espetacular,
situando a obra como algo que dialoga com Guy Debord”. Essas são apenas algumas
das questões que me atravessaram. Não conseguiria elencar todas porque várias
delas nem chegaram a ser formuladas conscientemente. Longe de me entender como
cocriador da obra, me aproximo mais da noção de saltador - toda tradução, para
Flusser, é um salto sobre o abismo que separa duas realidades/línguas
diferentes. Minha participação, nessa obra, foi trazer Deltagarkultur
para a realidade brasileira. A mesma realidade que Oswald de Andrade afirmava
ser permeada por uma consciência participante. Deltagar, or not Deltagar
that is the question.
Foi, (in)seguramente, um processo
participativo. Dos infindáveis e valiosíssimos diálogos com o Luiz Falcão (e da
paixão contagiante que ele deposita nessa obra) e o Luiz Prado. Do grupo de
estudos sobre o texto com a Clara Nolasco, o Renato Gutierres e a Camilla
Abreu. Dos afetos causados pela obra, compartilhados com/por Vanessa Heidemann.
Da revisão cuidadosa da Isabella Pichiguelli. Da validação (acadêmica, mas
também de cosmovisão) da Míriam Cris Carlos. Todos participantes.
A alegria de ter feito parte disso é prova
de que participar, no fundo, é ir em frente (com exclamação). A você que está
com esse livro em mãos, estendo o convite que um dia Elge Larsson (1944-2016)
me fez: vá em frente!
Tadeu Rodrigues Iuama
Julho de 2021
Artes Participativas! está disponível gratuitamente.
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