Seis larps e uma provocação

Sob o impactante título "Seis larps e uma provocação: uma estadia na antessala do inferno", o SESC 24 de Maio trouxe uma maratona de mais de 13 horas de larp durante a Virada Cultural 2018. Foram (como o título sugere), 6 larps, todos de autoria de Luiz Prado.

FONTE: Cartaz elaborado para divulgação do evento.


Minha participação aconteceu de uma maneira inédita para mim: a convite do Luiz Prado, criei uma ambientação sonora durante os larps. As ações dos participantes serviam de estímulo para que eu, com o auxílio do teclado e de uma mesa de som, criasse a ambientação espontaneamente. Foi uma forma surpreendente de participar pois, ao mesmo tempo em que observava atentamente aos larps, "jogava" junto, criando estímulos sonoros. 

Como essa postagem trás o relato de seis diferentes larps, mas que se comunicam entre si (como o cartaz já adverte trazendo os eixos JOGO - MEMÓRIA - IMERSÃO) pela temática da "despedida", opto por trazer a sinopse de cada larp, seguida de minhas impressões.


CAFÉ AMARGO
Sua companheira da vida inteira senta-se à mesa com uma xícara de café e anuncia que está indo embora. Seu pai marca um encontro na cafeteria e confessa ter uma doença terminal. Sua filha serve o café pela primeira vez em meses, apenas para dizer que vai se mudar para o exterior.

Em Café Amargo, você convida uma pessoa muito querida para um café. E anuncia que está indo embora. Em seguida, os papéis se invertem. Tão amarga quanto a separação é a bebida que embala a despedida. *


Café Amargo (roteiro aqui) é um velho conhecido, mas que nunca tinha tido a oportunidade de participar. Já havia organizado na ocasião da pesquisa do meu mestrado (a propósito, essa é minha primeira publicação desde que ele foi publicado como e-book, disponível gratuitamente aqui) mas, como minha preocupação ali era a pesquisa, optei por só organizar, sem uma participação ativa durante o larp. Dessa vez, o Luiz Prado me convidou a integrar a trama, além da elaboração da ambientação sonora. Começamos com três participantes e, no decorrer da duração da atividade, mais dois integraram o grupo. Tive lampejos do meu mestrado ao ver participantes trazerem referências das suas biografias para jogo, tais como afiliações políticas ou casos da vida profissional. Um larp elegante, como um dos participantes apontou, que mostra que as dinâmicas/acordos/mecânicas/regras podem ser integradas de maneira orgânica à realidade ficcional que se apresenta. Nesse caso, é o café, que marca a duração das despedidas, assim como serve de elemento constituinte da ambiência. O destaque em Café Amargo vai para a sua versatilidade, que permitiu tanto a entrada gradativa de novos participantes quanto serviu para apresentar a linguagem de maneira satisfatória para uma pessoa que não havia tido contato prévio com larp (e satisfez a ponto da pessoa continuar nos três larps subsequentes). 


O QUE VOCÊ VAI SER QUANDO CRESCER?
Você se tornou aquilo que sonhava ser quando tinha 17 anos? Você se lembra dos seus planos de adolescência? Eles ainda estão aí, em algum lugar?

É hora de voltar no tempo. Você está na escola, fora do horário normal. Um castigo obriga a pensar sobre o futuro e discuti-lo com outros estudantes. Talvez vocês não se conheçam, mas sabem muito bem a diferença entre as promessas do passado e o deserto do presente. *


Eu desconhecia esse roteiro do Luiz Prado até então (disponível aqui), e considerei ele uma surpresa agradável. Conforme relato, Luiz Prado atribui a ideia que dá início ao roteiro ao filme Clube dos Cinco, recorrente para os adolescentes da década de 1990, assistido tardiamente por ele. Eu também não assisti o filme quando adolescente, e só recentemente fiquei sabendo de sua existência, após assistir a série Merlí, que um de seus episódios, também faz referência ao filme. Explico isso porque a expectativa alegre certamente contagiou o clima com que entrei para fazer a ambientação sonora do larp. Contando com quatro participantes (dois deles vindos de Café Amargo e dois novos, nenhum tendo o primeiro contato com o larp), tive uma experiência bastante válida: tenho uma preocupação recorrente no que tange o registro de larps. Fotografias e relatos da narrativa, na minha opinião, podem formatar as experiências futuras do mesmo larp (isso pode até ser tópico para alguma postagem futura). Porém, durante O que você vai ser..., atribuí, de maneira aleatória e abstrata, notas musicais a cada um dos participantes, e utilizei as oitavas do teclado como paleta para diferentes climas do larp. De acordo com os estímulos de cada um dos participantes, tocava a nota na oitava dessa "paleta emocional" que criei de improviso. Isso me fez pensar em como essa criação espontânea de uma "música", mesmo que o resultado seja experimental e talvez de difícil digestão, possa ser uma forma de transliterar (ou fazer uma tradução intersemiótica) do larp para outra linguagem. Nessa ocasião, não gravei o resultado sonoro, mas é algo que pretendo realizar no futuro. Sobre o larp em si, Prado conseguiu manter sua habitual profundidade temática, mesclado com leveza. Os participantes debateram sobre como foi difícil representar com verossimilhança a vida aos 17 anos, uma fase onde as mudanças estão em ebulição.


ÁLCOOL
Você está diante da próxima dose. E ela traz lembranças. Enquanto decide se vira ou não o copo mais uma vez, memórias das experiências com a bebida vem e voltam. O histórico familiar. O carnaval. O vexame. A celebração. A culpa.

As outras pessoas dão vida às lembranças e representam aqueles que partilharam esses momentos com você. Talvez ajudem a resolver um problema. Ou mostrem que não há problema algum. Afinal, qual é sua relação com a bebida? *


Outro velho conhecido, Álcool (roteiro) é mais um dos larps que apliquei, mas que não tive oportunidade de participar como jogador. Minha experiência com ele havia ocorrido durante a V Semana de Psicologia da UNISO, cujo tema era "Psicologia e Direitos Humanos". Na ocasião, fui convidado a aplicar o larp no contexto da relação álcool-violência doméstica, para que os estudantes do curso pudessem vivenciar, por meio do larp, a questão do alcoolismo. Dessa vez, oito pessoas participaram. Três eram vindas de O que você vai ser..., e cinco recém-chegados, dos quais dois estavam tendo o primeiro contato com o larp. Tivemos uma reflexão bastante profícua sobre como o alcoolismo se perpetua como problema a partir dos radicalismos sobre a permissividade do consumo do álcool, e tomei especial atenção sobre como a cenografia elaborada por Luiz Prado ajudava a criar relações entre os participantes, aproximando-os mais do que gostariam (por vezes) e impedindo relações de proximidade (em outros casos).


FELIZES JUNTOS

Isso já deve ter acontecido com você. A relação que deveria ser para sempre se tornou apenas uma caixa repleta de objetos e memórias num quarto vazio. Que histórias as coisas guardam?

É o afeto escondido na vida material que emerge em Felizes Juntos. A tristeza pode ser o final de uma equação repleta de momentos felizes: mais com mais resultando menos. Se você passou pelos outros jogos, esse é o momento de sorrir um pouco. *

A despedida do outro em Café Amargo. A despedida do passado em O que vai ser quando crescer?. As recordações sobre algo que claramente não está indo para um bom caminho em Álcool. Talvez a síntese desses três larps, assim como uma pitada do que estaria por vir, foi o que Felizes Juntos propiciou. Contou com seis participantes (cinco vindos de Álcool, e um de Café Amargo), e observei uma das coisas mais maravilhosas que já tive a oportunidade, enquanto pesquisador, organizador ou participante de larp: presenciar a transição do estado emocional dos participantes, por meio dos seus personagens. Vindos de um clima mais denso de Álcool, Felizes Juntos começou de maneira que era perceptível (mesmo fora do círculo mágico, realizando a ambientação sonora) a alegria aconchegante dos participantes. Com o decorrer da narrativa ali tecida, houve uma mudança de estado emocional que passou também a me afetar. O não-dito no larp foi o principal tema da discussão subsequente, e a acuracidade do roteiro seguramente teve um grande papel em proporcionar essa experiência. Destaco o cuidado do workshop elaborado por Prado, uma vez que o larp tinha como um clima de carinho, o que evidencia o tabu que por vezes parecemos ter com o tema, sendo muito mais recorrente o uso de mecânicas para retratar a violência do que o afeto.


NOSTALGIA
Sua memória na boca de outra pessoa. Tudo começa com uma história rabiscada num pedaço de papel. Ela já não pertence a você: será jogada na roda e recontada por todos. Está tudo bem, sua origem será preservada. Em troca, ela não será mais sua depois dessa experiência. Como presente, você ganhará novas memórias para brincar também. *

Uma grande surpresa da programação foi, em plena meia-noite durante a Virada Cultural, contarmos com quatro pessoas conhecendo o larp ali, espontaneamente, juntando-se a dois outros participantes recém-chegados e outros quatro vindos de Felizes Juntos, compondo o grupo de 10 pessoas que participaram de Nostalgia, o larp que individualmente teve maior público em Seis larps e uma provocação. Como mostra sua sinopse, Nostalgia é sobre contar memórias, não importando se são suas, como se fossem suas. Em certa medida, Luiz Prado sublimou a proposta do norueguês Mathijs Holter em Três de mim (roteiro em português aqui) - nostalgicamente o primeiro larp que participei. O termo "certa medida" aparece aqui porque nostalgia não se resume à um "hack" de Três de mim: tem sua poética própria, apesar da referência ao larpscript norueguês. Com memórias que oscilaram do cômico ao trágico, mais ou menos próximas da realidade concreta, o larp me deixou com uma única insatisfação: como se alongou mais do que o previsto, não houve tempo suficiente para um debrief satisfatoriamente amplo, o que me deixa curioso sobre como os participantes absorveram a experiência. Do ponto de vista de quem estava participando quase que como um espectador, acredito que a incidência do bleed foi uma constante durante Nostalgia, certamente condizente com a proposta.


O ANO DA TRISTEZA
Você machucou as pessoas que importavam de verdade. Foi feio e traumático e a consequência é abandono e solidão. Junto dos outros, é hora de sofrer sozinho.

Fechando a noite, você contará suas histórias sombrias, deixando que os outros encarnem as pessoas queridas e narrem suas versões dos fatos. Não, não será bonito. *


Encerrando a noite, O ano da tristeza contou com cinco pessoas (quatro vindas de Nostalgia e uma vinda de Café Amargo). Minha primeira impressão, ainda no briefing do larp, é que O ano... dialogava com Deriva, outro larp de Luiz Prado. O motivo de tal impressão é de que ambos têm um caráter que flerta com o solipsismo. No caso de Deriva, esse caráter é mais evidente mas, apesar das dinâmicas de interação entre os participantes, tal essência permanece. Aqui também cabe o destaque à curadoria de Prado na escolha dos larps que entrariam na programação, assim como na sua sequência: O ano da tristeza é, de fato, um jogo de despedida (talvez pudesse ser pensado até como meta-despedida), de modo que fica difícil imaginar os participantes saindo desse larp e indo para o próximo, sequencialmente. Se o bleed já aparece em Nostalgia, aqui é ele quem dá o tom. Por isso, é um larp que evoca a reflexão posterior, evidenciando claramente o que alguns advogam como sendo o real potencial terapêutico do larp - para além do uso clínico, é a própria experiência que pode gerar reflexões transformadoras no indivíduo. Para além disso, visualmente foi angustiante ver o uso do batom, que do lugar onde eu estava criava uma sensação de que os participantes iam ficando cada vez mais machucados no decorrer do larp.



A primeira característica que salta sobre a programação é o positivo fluxo do público: pessoas que jogaram pela primeira vez, pessoas que jogaram só um, pessoas que jogaram quatro ou cinco seguidos, pessoas que vieram no primeiro e voltaram no último. Reflexões sobre isso provavelmente surgirão em breve, mas é importante registrar. Observar o escopo do larp na Virada Cultural 2018, com as 13:30 de Seis larps e uma provocação, além de programações da Confraria das Ideias no SESC Belenzinho e na Biblioteca Viriato Corrêa, mostra um reconhecimento sólido do larp enquanto prática artística/cultural. Mais importante ainda é reconhecer a qualidade e consistência da produção de Luiz Prado, seguramente o grande nome da produção de propostas (ou partituras, como ele prefere dizer) no cenário nacional - sobretudo quando pensamos num larp com preocupações artísticas, para além do entretenimento lúdico. Ver como os mais diversos elementos foram utilizados para criar uma dramaturgia coerente é algo que ainda vai render futuras reflexões, certamente. Iluminação, cenografia, ambientação musical (minha singela contribuição nessa miríade de estímulos), mecânicas, a própria confecção dos textos das propostas, o material disposto no "círculo mágico" - tudo isso compôs um papel tão significativo quanto os demais participantes, gerando estímulos para atender a proposta geral da programação.


* Todas as sinopses foram retiradas do site http://www.larp.art.br/.

Comentários

  1. Importante, inclusive, ressaltar que o Luiz Prado tem papel muito significativo nos dois larps que a Confraria realizou durante a Virada, tanto no argumento, quanto na produção dos textos e mecânicas: e como se ele estivesse presente fisicamente e espiritualmente em todos os 8 larps da Virada!

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